O pós-pandemia no transplante hepático.

Anualmente realizamos uma análise a respeito dos transplante de fígado realizados no serviço(1), com o intuito de crescimento e aperfeiçoamento profissional.

Finalizamos o ano de 2021 com 202 transplantes hepáticos realizados desde o início das atividades no Hospital do Rocio. O caso número 175 marca o início do período pós-pandemia. As incertezas decorrentes do impacto do SARS-CoV2 na atividade transplantadora resultaram em 6 meses sem a realização de transplantes. Restringiremos a análise para o período pós-pandemia.

O período compreendido entre outubro de 2020 e dezembro de 2021 nos trouxe a realização 28 transplantes hepáticos, de pacientes provenientes da 2ª Regional de Saúde (Curitiba) em sua maioria (53,57%, n=15), sendo somente 1 caso (3,57%) proveniente de fora do Estado do Paraná. Não há óbice legal na transplantação de pacientes de fora do estado(2). As características demográficas e de gravidade dos pacientes transplantados estão demonstradas na Tabela 1.

Tabela 1- Características demográficas e de gravidade.

SexoMasculino 75% (21); Feminino 25% (7)
Idade51,96±11,96 (Min 16, Máx 69)
CHILDA (3,57%); B (39,29%); C (57,14%)
MELD21,17±7,72
MELDa24,57±6,11
BAR9,67±4,39
PSOFT9,89±7,88
SOFT11,53±9,06

Pacientes com essa média de MELD possuem mortalidade estimada em

A maioria dos pacientes transplantou sem receber pontos de situações excepcionais ao MELD (77,78%; n=21). Carcinoma hepatocelular (18,52%; n=5) e ascite refratária (3,7%; n=1) foram as causas mais comuns que receberam pontos de exceção ao MELD. A etiologia mais comum foi o álcool (50%; n=14).

Extubação nas primeiras 24h após o transplante foi possível em 71,43% (n=20). O MELD médio (29,1±7,8), BAR (13±3,3), PSOFT (19,62±7,72), SOFT (21,65±9,69), são significativamente maiores nos pacientes que não saíram da ventilação mecânica nas primeiras 24h, com p=0,0121; p=0,0079; p=0,000; p=0,0016 respectivamente. Entre os extubados, a mortalidade cirúrgica foi de 20%, frente a 62,50% dos não extubados.

No momento do transplante a maioria dos pacientes não estavam hospitalizados (64,29%, n=18), frente a 28,57% (n=8) que se encontravam em Unidade de Terapia Intensiva e 7,14% (n=2) em ambiente de enfermaria. Cônscio que o transplante hepático tem maior mortalidade relacionada ao período peri-operatório, nos trinta primeiros dias após o transplante – denominada mortalidade cirúrgica – nós concentramos muito de nossa análise na compreensão desse período.

Vale abrir espaço para um disgressão: O país possui um sistema informatizado de notificação da evolução de sobrevida no transplante hepático tanto no Sistema Nacional de Transplantes (SNT) quanto no sistema próprio da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO). Não obstante esse acompanhamento é reconhecida e notoriamente não confiável em sua totalidade pois os sistemas não “se conversam”, não há obrigatoriedade da informação dos dados e tão pouco conferência da veracidade das informações. Resta ao médico cônscio de suas atribuições hipocráticas a análise in loco e in totum com a comparação de dados nacionais de alguns centros transplantadores e exíguos, senão únicos(4), trabalhos multicêntricos nacionais. A maioria das análises de sobrevida possuem efeitos comparativos de populações norte-americanas ou européias, que apesar de servirem como padrão-ouro ou meta, não podem ser simplesmente traduzidas para nossa discrepante realidade sócio-econômica. Focar nossos esforços na redução da mortalidade cirúrgica resulta em maior impacto na sobrevida a longo prazo.

Observamos uma mortalidade cirúrgica de 32,14% (n=9), concentrada nos 10 primeiros casos (60% mortalidade) do período pós-impacto inicial do COVID. Os 18 transplantes seguintes trouxeram uma mortalidade cirúrgica de 16,6%, número que atinge nossa meta interna de almejar uma mortalidade cirúrgica na casa dos 20%.

Uma sobrevida inicial de 80% permite com que a sobrevida em um ano atinja a faixa dos 65-70%, bastante adequada para a gravidade das doenças enfrentadas e para a realidade sócio-econômica brasileira. Algumas etiologias terão sobrevida maior, outras, menor.

Dos 28 transplantes, a frequência de desenvolvimento de infecções relacionadas a assistência à saúde (IRAS) foi de 51,22% (n=21). Nos pacientes com mortalidade cirúrgica, 55,56% (n=5) desenvolveram IRAS, nos que não apresentaram mortalidade cirúrgica 68,42% desenvolveram IRAS. Nos pacientes com mortalidade cirúrgica, os germes mais isolados foram Acinetobacter (22,22%), Staphylococcus (11,11%) e Klebsiella pneumoniae (44,44%).

Os motivos dos óbitos se concentram nas causas infecciosas bacterianas, principalmente gram-negativos multirresistentes (Tabela 2). Sítio mais frequente o pulmonar (60%), seguido de hematogênico + urinário (20%) e pulmonar + hematogênico + abdominal em 20%.

Tabela 2- Motivo do óbito.

Motivo óbiton%
Cardiovascular111,11%
Infecciosa555,56%
Metabólica333,33%
TOTAL9100,00%

As infecções pelas bactérias gram-negativas multi-resistentes (MDR) são reconhecidas como uma grande ameaça à saúde da humanidade(5). Seu controle é desafiador e as opções terapêuticas são bastante limitadas. Desse grupo transplantado, o swab retal de vigilância era negativo em 92,59% (n=25), sendo que nos 7,41% (n=2) restantes ele não foi realizado. Nesses swabs indisponíveis, os dois pacientes desenvolveram IRAS, uma por Klebisella e a outra por Staphylococcus.

Sabemos que as infecções por MDR são mais prevalentes em estadias prolongadas em hospital ou UTI, cirurgias recentes, monitoramento invasivo ou exposição a antibióticos. Em média a primeira evidência de infecção aconteceu 11 dias após o transplante.

Em uma coorte multicêntrica do Estado do Paraná(4), pacientes de maior risco – escores BAR, PSOFT, SOFT em conjunto maiores que 12 – a sobrevida em 30 dias observada foi de 36,36%. A sobrevida desse grupo de maior risco (n=7; 25%) na presente análise foi 42,86% (n=3).

A sobrevida no estado do Paraná no grupo de menor risco – BAR, PSOFT e SOFT < 12 – é de 87,79% e na presente coorte de 61,54% (n=8).

Tabela 3 Estratificação dos grupos de risco.

 Maior riscoMenor risco
Pacientesn=7N=13
Sobrevida em 30 dias42,86% (n=3)61,54% (n=8)
Motivo do óbitoInfecciosa (n=2; 50%)Cardiovascular (n=1; 20%)
 Metabólica (n=2, 50%)Infecciosa (n=3; 60%)
  Metabólica (n=1; 20%)

O reestabelecer das atividades do transplante hepático no pós-COVID foi desafiador. O Hospital do Rocio tornou-se referência no Estado do Paraná para o atendimento da doença, ocupando mais de 90% da capacidade instalada para atendimento. Essa dedicação quase exclusiva impactou de diversas formas o trabalho do serviço de transplante, mas que aos poucos foi se adaptando. Os óbitos em mortalidade cirúrgica por complicações pulmonares – preponderantes – se concentraram no período de alto estresse institucional decorrente do COVID, inclusive no sub-grupo de menor risco teórico de mortalidade. Alguns desses pacientes pelo COVID confirmado laboratorialmente, outros com alterações pulmonares compatíveis com COVID, sem confirmação laboratorial, que dado o contexto e as imagens tomográficas, interpretamos como a doença em si.

Que venha 2022, estamos no caminho certo.

Pontos-chave:

  • 25% dos pacientes foram transplantados em situação de maior risco de mortalidade.
  • Pacientes que não saem da ventilação mecânica em 24h carregam uma mortalidade mais alta.
  • O MELD médio de transplante está muito alto.
  • Uma redução na ocorrência de infecções por enterobactérias tem alto potencial de impacto na redução da mortalidade.
  • É necessário pensar o transplante hepático em português.

Referências bibliográficas.

  1. Silveira F SF, Silveira CRS, Junior NSS, Higa HC, Montero ASJ. Relatório anual – 2019 – Transplante de Fígado do Hospital do Rocio2019. https://doi.org/10.6084/m9.figshare.12923168.v1 
  2. Portaria de Consolidação nº4, de 28 de setembro de 2017., (2017).
  3. Wiesner R, Edwards E, Freeman R, Harper A, Kim R, Kamath P, et al. Model for end-stage liver disease (MELD) and allocation of donor livers. Gastroenterology. 2003 Jan;124(1):91-6. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/12512033/
  4. Silveira F, Silveira FP, Freitas ACT, Coelho JCU, Ramos EJB, Macri MM, et al. Liver transplantation: survival and indexes of donor-recipient matching. Rev Assoc Med Bras (1992). 2021 Jun;67(5):690-5. https://doi.org/10.1590/1806-9282.20201088
  5. Mills JP, Marchaim D. Multidrug-Resistant Gram-Negative Bacteria: Infection Prevention and Control Update. Infect Dis Clin North Am. 2021 Dec;35(4):969-94. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/34752228/
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