Publicado em 01/04/2018 na Gazeta do Povo.
Qual conduta devemos adotar quando presenciamos um ato de amor genuíno e desprendimento em benefício de desconhecidos? Acredito que uma delas é escrever sobre isso. As palavras são capazes de materializar nossas vivências, ficar para a posteridade.
A doação de órgãos para transplante é um grande ato de solidariedade e amor ao próximo, doa-se a alguém desconhecido, sem troca material, sem expectativa de retorno.
Um quadro de falência aguda do fígado é um quadro dramático, de início súbito, rápido e mortalidade altíssima. Um insulto às células do fígado resulta na sua destruição maciça, desequilibrando nosso organismo, desencadeando uma cascata de eventos de deficiência na coagulação do sangue, inchaço do cérebro e finalmente à morte.
A juventude é um momento ímpar da vida, o jovem cheio de esperanças, os pais com a recente experiência mágica da infância frente às preocupações da fase de transição para a vida adulta. Eis que um moço de 15 anos apresenta um amarelão (icterícia) nos olhos, mal-estar e alterações laboratoriais graves. A família deixa sua residência no interior e vai buscar recursos na cidade grande. Temor, ansiedade, o medo do desconhecido e da doença. Coincide com a chegada no hospital o desencadear da cascata de eventos, confusão mental, necessidade de ventilação mecânica.
Exames e mais exames, unidade de terapia intensiva e em poucas horas o diagnóstico: falência do fígado. Alta gravidade, única possibilidade, um transplante. O desespero da família é evidente frente ao diagnóstico, e mais, frente à impotência da medicina em estabelecer uma causa. Obviamente vem à cabeça da mãe: “o que eu fiz de errado?”.
Nessas horas, na cabeça do médico, surgem as palavras de Mário Quintana, “que a morte chegou na sua antiga locomotiva, ela sempre chega pontualmente na hora incerta.” Mas como é inerente a sua missão, a medicina vai enfrentar o desafio, medidas de controle do inchaço cerebral, remédios para evitar infecção, transfusão de derivados do sangue para controlar a hemorragia. E a derradeira esperança, um transplante.
Aciona-se a Central de Transplantes, paciente em lista de espera, gravidade alta, legislação que prioriza quadros graves em pacientes jovens. Surge um órgão, aciona-se a equipe de captação e na cirurgia de extração dos órgãos vem a decepção, órgão doente, inadequado para transplante.
Esperanças claramente abaladas, a mensagem para a família é de força, a batalha ainda não estava perdida. Enfermagem, fisioterapia, nutricionistas, médicos, capelania, psicologia, todos focados na tentativa de manutenção da vida e no suporte da família.
O tempo não para e a certeza de que cada vez menos horas estão disponíveis para o garoto. Eis que surge mais uma doação no interior do estado, logística organizada, equipe mobilizada, deslocamento aéreo, o tempo urge. Avaliações seriadas demonstram que a esperança ainda existe, intervenções médicas conseguem manter a estabilidade hemodinâmica e controle do inchaço cerebral.
Horas se passam e elas levam o sono. Eis que a esperança ressurge, o órgão é adequado para transplante, cirurgia agendada para o momento da chegada do órgão ao hospital. Quando o órgão chega ao hospital e o adolescente ao centro cirúrgico, a avaliação clínica indica pupilas dilatadas, ausência de estímulo elétrico cerebral, ou seja, chegamos tarde demais.
A equipe do Centro Cirúrgico, na expectativa da vida, se vê frente a morte. O abatimento é evidente, vários não seguram as lágrimas. Temos um órgão viável para transplante, ali, na sala cirúrgica, mas que para aquele paciente não é mais uma realidade.
Novamente se aciona a central de transplantes, outros pacientes estão entre a vida e a morte. O órgão não pode ficar acondicionado na solução de preservação por muitas horas. Logística acionada, de maneira ágil o órgão é distribuído para o próximo paciente na lista de espera, localizado em outra instituição hospitalar, a esperança de vida ressurge para outro indivíduo.
No interim encaminha-se o paciente para o exame capaz de selar o diagnóstico da morte encefálica, o cateterismo cerebral. O exame confirma a ausência de fluxo sanguíneo no encéfalo, a morte em sua locomotiva havia chego para o garoto.
Dentre as diversas características da ação médica, a comunicação de más-notícias talvez seja a de mais difícil realização e de constante aperfeiçoamento. É quando os atos técnicos médicos perdem importância, a empatia e as técnicas de linguagem devem ser preponderantes. Ao adentrar na sala de espera do hospital e comunicar o ocorrido, vivenciamos em sua plenitude a esperança trocada pelo desespero, a família recebe a pior das notícias.
Nessa tempestade de emoções desencadeada pela morte, presenciamos o ato de genuíno amor e desprendimento descrito no início, frente ao diagnóstico do filho em morte encefálica, posteriormente a mãe autoriza a doação de seus órgãos ainda viáveis. A esperança ressurge para algum desconhecido, frente a uma imensurável dor, essa mãe distribuiu o amor.
Fábio Silveira é cirurgião de transplantes do Instituto para Cuidado do Fígado e Hospital do Rocio.