O Brasil administra através do Sistema Único de Saúde (SUS) o maior programa público de transplantes do mundo. Umbilicalmente ligado ao SUS, esse sistema é responsável por prolongar e aumentar a qualidade de vida de milhares de pacientes que anualmente são diagnosticados com doenças que necessitam como tratamento um transplante.
Ao final de 2020 havia 44544 brasileiros inscritos em lista de espera para transplante de órgãos ou de tecidos(1), número que certamente é subestimado pois o acesso ao tratamento – possibilidade de transplante – tem bastante disparidades entre as regiões brasileiras(2).
As doenças que levam ao transplante impactam de sobremaneira a qualidade de vida, a expectativa de vida e a capacidade produtiva das pessoas. Propiciar acesso e efetividade do tratamento é uma maneira de auxiliar essas milhares de pessoas e suas famílias a escaparem da armadilha da pobreza.
Em números absolutos o Brasil é o segundo país do mundo que mais realiza transplantes de fígado e de rim, porém proporcionalmente à população ocupa a 25ª. e 32ª posições respectivamente(1). Transplantes podem ser de órgãos ou de tecidos. Transplantes de órgãos envolvem os de coração, pulmão, pâncreas, fígado, intestino e rins. Transplantes de tecidos são os de pele, ossos, córnea e medula óssea.
É errôneo pensar que o transplante se restringe ao ato cirúrgico em si. Um complexo sistema de identificação de potenciais doadores, de acesso ao tratamento e de financiamento precisa ser saudável para uma melhor efetividade da aplicação dos recursos públicos. Apesar de merecer reconhecimento e orgulho, o Sistema Nacional de Transplantes precisa ser aperfeiçoado para realmente cumprir os preceitos da Constituição Federal.
Pontos-chave
• Os números absolutos de transplantes no Brasil mascaram iniquidades do acesso e disponibilidade de tratamento.
• Falta de acesso e disponibilidade de tratamento impactam nos nossos índices de pobreza.
Entendendo o funcionamento do Sistema Nacional de Transplantes.
As atuais diretrizes do Sistema Nacional de Transplantes (SNT) foram estabelecidas em 2009(3), com posterior consolidação em 2017(4). Nelas o Ministério da Saúde por meio da Coordenação Geral do Sistema Nacional de Transplantes (CGSNT), subordinada da Secretaria de Atenção à Saúde (SAS) exerce suas funções contando com o apoio de Grupos de Assessoramento Estratégico e das Câmaras Técnicas Nacionais de cada especialidade médica. A função executiva das atividades de coordenação e logística de distribuição de órgãos no âmbito nacional fica a cargo da Central Nacional de Transplantes (CNT). A CGSNT não conta com servidores concursados do Ministério da Saúde, característica que impede a especialização e aperfeiçoamento de seu corpo funcional.
Seguindo a lógica descentralizadora do SUS, cada estado da federação é responsável pela organização de cada sistema de captação e distribuição de órgãos para transplante. Nos estados uma Coordenação Estadual de Transplantes (CET) monitora as atividades das Organizações de Procura de Órgãos (OPO), que trabalham em conjunto com as Comissões Intra-Hospitalares de Doação de Órgãos e Tecidos (CIHDOTT), que em primo plano são as responsáveis pela identificação dos potenciais doadores.
Os potenciais doadores, pacientes em morte encefálica, são diagnosticados conforme regulamentação do Conselho Federal de Medicina(5) e após autorização familiar se tornam doadores efetivos. As doações efetivas são aquelas que beneficiarão os pacientes que necessitam de um transplante. As CET coordenam a captação e a distribuição dos órgãos para transplante. Apesar de ser de âmbito nacional, as listas de espera para transplantes são organizadas em plano estadual, de tal consorte que a priori um órgão doado em um estado é transplantado nesse mesmo estado. Quando isso não acontece, a distribuição do órgão passa a ser intermediada pela CNT.
Os hospitais e as equipes responsáveis pelos transplantes são credenciados segundo as diretrizes legais, e são os responsáveis pelos cuidados dos pacientes no período do pré e pós-transplante. O fornecimento das medicações imunossupressoras, aquelas responsáveis pelo controle da rejeição ao órgão transplantado, são fornecidas pelas farmácias especiais do estado.
Pontos-chave.
• O arcabouço legal e o desenho organizacional do sistema de transplantes já existe.
• A CGSNT necessita profissionalizar seus quadros com profissionais de carreira.
O financiamento do sistema.
Os recursos financeiros do sistema são provenientes do Fundo de Ações Estratégicas e Compensação (FAEC), que cobre todas as atividades relacionadas ao transplante. Esses recursos são transferidos pelo Fundo Nacional de Saúde por meio do Programa de Trabalho do Orçamento Geral da União 10.302.2015.8585 – Atenção à Saúde da População para Procedimentos em Média e Alta Complexidade(6).
A saúde suplementar não participa efetivamente da atividade de transplantes no país, que acaba sendo custeada pelo SUS mesmo quando o paciente é integrante de algum seguro ou plano de saúde. Por omissão de diversos agentes, em consequência de interesses diversos, a Agência Nacional de Saúde não delibera a respeito da incorporação das diversas atividades transplantadoras no rol da saúde suplementar. A saúde suplementar já é responsável pelo atendimento de mais de 48 milhões de beneficiários, ou aproximadamente 23% da população brasileira(7).
Na teoria o discurso é que os pacientes provenientes da saúde suplementar que são atendidos pelo SUS tem seus custos a posteriori ressarcidos ao erário, o que na prática não acontece.
Pontos-chave.
• A estrutura de financiamento já existe, os estados são responsáveis pela organização de seus sistemas, não pelo financiamento.
• A saúde suplementar precisa ser chamada à responsabilidade no custeio dessas atividades.
As discrepâncias do sistema.
É simples entender o que um sistema de transplantes precisa entregar para ser efetivo: identificar os potenciais doadores e prover acesso ao sistema para quem precisa.
O caráter de descentralização do SUS nas esferas federal, estadual e municipal muitas vezes revela diferenças na efetividade da aplicação dos recursos públicos.
Em relação à taxa de doadores efetivos por milhão de população, índice utilizado como um balizador da efetividade da aplicação dos recursos na área, os achados são bastante díspares entre os estados brasileiros, conforme demonstrado na Figura 1.
O fato de um estado não apresentar doações efetivas em um número razoável não significa que os doadores não existem, significa que eles não são identificados, que o sistema é falho.
Temos alguns estados, como Paraná e Santa Catarina, com números de países desenvolvidos e outros estados com eficiência bem reduzida(8) ou virtualmente nulas. Por que temos taxas de identificação de doadores tão discrepantes?
A efetividade do processo de identificação dos doadores de órgãos pode ser reflexo do desenvolvimento da sociedade, esse analisado pelo Índice de Desenvolvimento Humano, proposto pela Organização das Nações Unidas(9). Sua versão adaptada ao contexto nacional, o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM), tem sido utilizado como ponto de apoio para análises que envolvem longevidade, educação e renda da população brasileira.
Sob essa ótica do desenvolvimento humano regional, mesmo quando estratificada por estados dentro da mesma faixa de IDHM (médio, alto e muito alto), observamos discrepantes taxas de doação(10) por milhão de população (PMP), o que desnuda a diferença na efetividade da aplicação dos recursos do orçamento na área (Figura 2).
A eficiência do sistema de procura de órgãos está muito relacionada ao sistema de busca ativa e da existência de aplicação dos protocolos de notificação e manutenção de morte encefálica, fatores esses de responsabilidade da esfera estadual, a cargo das Centrais Estaduais de Transplantes(10).
Caso os recursos públicos para financiamento do sistema fossem oriundos de fundos municipais ou estaduais, essas diferentes taxas de doação certamente seriam justificadas por diferentes prioridades locais no que concerne a alocação ou priorização de parcos recursos financeiros.
Não obstante, haja vista que a fonte de financiamento de todo o sistema é de fundo federal, taxas de doações efetivas/pmp em faixas de IDHM semelhantes são resultado da incapacidade de estabelecimento e gerenciamentos de políticas públicas efetivas em tão sensível área da saúde pública.
Estados com menor atividade estabelecida de busca ativa e efetivação da doação de órgãos para transplante acabam por ter menor atividade transplantadora, sendo que as disparidades na possibilidade do tratamento proporcionais à população ficam bem evidenciados nas figuras 3 e 4, que demonstram os números proporcionais de transplantes de rim e fígado nos diferentes estados.
É um sistema de retroalimentação perverso, pois um sistema de busca ativa de doadores falho não permite o acesso da população do estado ao tratamento necessário. Mais uma vez devemos frisar que o fato de não ter transplantes, não significa que não existam cidadãos necessitando deles.
Pontos-chave.
• As disparidades regionais nos números de identificação de doadores de órgãos são claramente organizacionais, não por falta de financiamento.
• Não prover um tratamento efetivo para a população mantém grande número de brasileiros na armadilha da pobreza.
Os puxadinhos do financiamento.
É de conhecimento público as dificuldades de financiamento e do sub-financiamento do SUS, com os transplantes a realidade não é diferente. Não reajustada há longos anos, a tabela do SUS nos transplantes vem impactando a prestação desses serviços.
Em 1997 um transplante de fígado – um dos mais complexos e onerosos – equivalia a em relação à paridade do dólar U$50.387. Já em 2021 o financiamento equivale a U$20396, fora a aplicação de índices de preços como o IGPM (-166,27%) ou IPCA (-109,96%), lembrando que o Índice de Variação de Custos Médicos Hospitalares sempre anda acima do IPCA(11).
A maior parte (81%) dos transplantes são realizados em hospitais privados ou filantrópicos, que carregam há muitos anos os serviços mais complexos prestados pelo SUS, em detrimento aos hospitais eminentemente públicos, fenômeno observado em todas as áreas da medicina de média e alta complexidade.
Para tentar mitigar essa ausência de reajuste linear da tabela do SUS a política adotada nos últimos governos foi a de adotar incremento pontuais nas tabelas, conforme a pressão dos diferentes grupos ou entidades políticas. No caso dos transplantes, uma política de incremento editada em 2012, chamada Incremento Financeiro para a Realização de Procedimentos de Transplantes e o Processo de Doação de Órgãos (IFTDO) foi colocada em prática(12). Ela consiste na classificação em diferentes faixas de adicional sobre o faturamento relacionado ao transplante, conforme o número de modalidades de transplantes realizados pela instituição hospitalar.
Dessa forma, conforme o “nivel” o hospital pode receber 60% de acréscimo no faturamento relacionado aos transplantes. Existem dois óbices de gravidade significativa nessa modalidade de upgrade escolhida de financiamento pelo SUS. A primeiro deles é que sob uma tabela base já bastante defasada, serviços de transplante novos, responsáveis pelo desenvolvimento da atividade em áreas do país ainda não atendidas basicamente passam por inviabilidade financeira, pois não recebem desde o início os valores reajustados pelo IFTDO.
O segundo e mais nefasto é de deixar de cumprir um dos princípios basilares do SUS, a equidade. A política de incremento financia de maneira diferente, e obviamente permitindo uma qualidade de tratamento diferente, o mesmo procedimento. Essa política normaliza que brasileiros possam ser tratados de maneira diferente ao receberam o mesmo tratamento médico. Ao não possuir uma tabela base com renumeração adequada e tentar corrigir isso com diferentes níveis de incremento, o sistema cria diferentes níveis de cidadãos, o que é flagrantemente contra os princípios do SUS e inconstitucional. A maneira mais correta é vincular o repasse de recursos relacionado à porta de saída do sistema, isto é, a efetividade do serviço prestado e não a quantidade de procedimentos realizados, como é feito atualmente.
Além dos problemas do IFTDO, o financiamento dos transplantes conta com o Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (PROADI-SUS). Esse programa permite através de bilionária renúncia fiscal, que alguns hospitais prestem projetos ao SUS(13). Nesse programa o total aplicado anualmente – para poucos hospitais – equivale à basicamente todo o orçamento que financia a atividade transplantadora no país, com uma relação custo-efetividade bastante questionável e já alvo de diversas recomendações e determinações dirigidas ao Ministério da Saúde, com vistas à melhoria da gestão do programa, segundo o Acórdão 394/2018 do Tribunal de Contas da União(14).
Pontos-chave.
• O atual sistema de financiamento dos transplantes permite, com melhorias de gestão, o aumento da eficácia da identificação do número de doadores e consequente número dos transplantes.
• Para isso há necessidade de readequação de prioridades das atuais formas de financiamento (IFTDO e PROADI).
Transplantes podem integrar a força tarefa de erradicação da pobreza.
O tema relacionado aos transplantes não afeta uma parcela mínima da população. Estima-se que atualmente atendemos somente 30% da necessidade de transplantes, milhares de famílias se deparam com o tema anualmente, seja quando um familiar é vítima de uma doença que o elege a ser potencial doador de órgãos ou quando surge a necessidade de um transplante.
O país já tem uma estrutura delineada na área de transplantes, porém deficiências organizacionais e anormalidades de financiamento prejudicam sua efetividade. Ajustes organizacionais como a profissionalização da Coordenação Geral do Sistema Nacional de Transplantes, para ajudar e fiscalizar que todos os estados reproduzam sistemas bem-sucedidos já em funcionamento no país são necessários.
Rever a atual forma de financiamento, que permite que brasileiros sejam tratados de maneira diferente para situações iguais, pode permitir que cumpramos os preceitos constitucionais de acesso e equidade do SUS.
É uníssono na literatura que os transplantes reduzem custos de tratamento das doenças de base que resultam na necessidade do transplante, além de prolongar o tempo e a qualidade de vida, com reganho da capacidade produtiva. Atentar a esse tema definitivamente pode integrar os atuais e futuros esforços envolvidos na erradicação da pobreza.