As enterobactérias resistentes a carbapenêmicos no transplante hepático.

Em 2017 a Organização Mundial de Saúde publicou uma lista de agentes patológicos considerados uma ameaça à saúde pública mundial, como uma alerta para o desenvolvimento de novas drogas ou de pesquisas(1). As bactérias gram-negativas resistentes a múltiplos antibióticos da família das enterobactérias produtoras de carbapenemase ganharam o selo de prioridade um, de importância crítica.

Essas bactérias multiresistentes são em parte resultado do avanço da medicina, que através do uso de inúmeros mecanismos de suporte à vida ou de tratamento prolongam a estadia hospitalar de pacientes criticamente enfermos, que ficam mais expostos a antibióticos alimentando um ciclo de emergência de resistência bacteriana.

Um exemplo perfeito desses pacientes são aqueles candidatos à transplante hepático. Muitos deles são expostos à antibioticoterapia e intervenção multiprofissional de saúde nos ambientes de enfermaria ou de unidade de terapia intensiva para tratamento de suas doenças de base. Após o transplante necessariamente passam por ambientes de centro cirúrgico, de terapia intensiva e por um estado de imunossupressão farmacologicamente induzido. Esse conjunto de passagens pelas instituições hospitalares, em virtude de uma doença de base grave e mortal, resultam em exposição a esse tipo de infecção multirresistente.

Além dos fatores previamente expostos, a íntima relação do intestino com o fígado revestem de maior importância as enterobactérias no transplante hepático. Receptor do fluxo sanguíneo de todo o sistema venoso portal, quebras de barreira da mucosa intestinal e consequente passagem de germes da luz intestinal à corrente sanguínea encontram no fígado seu primeiro entreposto para a circulação sistêmica. Essa quebra de barreira intestinal pode ser precipitada por diversos mecanismos no ambiente do transplante hepático, como a fisiopatologia de vasodilatação sistêmica característica da doença hepática crônica terminal, a pressão seletiva de antibioticoterapia e o necessário fechamento transitório da veia porta durante o ato cirúrgico do transplante de fígado.

O cólon é o habitat natural das enterobactérias, sendo que o risco estimado de infecção clínica em indivíduos colonizados é de 9%, no caso das enterobactérias resistentes à carbapenêmicos (CRE) para a população em geral(2). Essa incidência é maior para receptores de transplante hepático, sendo relatados risco de infecção subsequente à colonização por CRE de 18,2% a 89%(3).

Sendo tema de relevante importância clínica sempre procuramos manter atualizado o conhecimento e boas práticas referentes ao enfrentamento dessa ameaça à saúde pública. A relevância do tema levou três sociedades a emitirem posicionamentos recentes para orientar a terapêutica e que serviram de embasamento para esses nossos comentários, a saber a Sociedade de Doenças Infecciosas da América (IDSA)(4), a Sociedade Européia de Microbiologia Clínica e Doenças Infecciosas (ESCMID)(5) e a Sociedade Americana de Transplantação (AST)(3). A ESCMID publicou em formato de respostas a perguntas relevantes, através de revisão científica e opinião de especialistas; já a IDSA e a AST fizeram levantamentos baseados em metodologias de revisões sistemáticas.

O interessante de mesclar dois posicionamentos de diferentes continentes é que refletem além de uma microbiologia diferente, diferentes compreensões de abordagem e de alocação de recursos na saúde.

Para nortear nossa revisão de estudo levantamos o perfil microbiológico e de sensibilidade das infecções relacionadas à saúde (IRAS) dos 28 transplantes de fígado realizados no período outubro de 2020 a dezembro de 2021.

As CRE são por definição Enterobacteriaceae não suscetíveis ao imipenem, meropenem, doripenem, ertapenem ou aquelas que uma carbapenemase é identificada. São genericamente divididas naquelas que produzem ou não carbapenemases(4).

As carbapenemases são um grupo heterogêneo de enzimas que conferem resistência aos carbapenêmicos, sendo elas a Amber class A serine-B-lactamase (KPC); a Amber class B metallo-B-lactamases(MBL) –  que inclui a IMP, VIM e NDM –  e a Amber Class D serina, que inclui a OXA.

A KPC é a mais comum em nosso meio. Das amostras isoladas e que foi realizado o sequenciamento genético (n=6), todas foram identificadas o gene blaKPC e nenhuma o gene blaNDM.

O gene blaKPC é estável contra a primeira geração de inibidores de beta-lactamase, sendo facilmente transferido para outras enterobactérias, incluindo E. coli e Enterobacter spp. As NDMs são geralmente resistentes a todos os aminoglicosídeos. Por não termos casos registrados de blaNDM em nossa coorte, não faremos considerações sobre a terapêutica.

Plasmídeos geralmente conferem múltiplos determinantes de resistência, sendo comum resistência concomitante à fluoroquinolona e aminoglicosídeos. A transmissão desses mecanismos de resistência por plasmídeos é importante entidade de atuação de stewardship.

As infecções por CRE em receptores de transplante de órgãos sólidos (TOS) têm incidência de 3-10%, a maioria dentro dos dois primeiros meses do transplante, resultando em mortalidade de 30-50%(3). No transplante hepático, têm incidência de 6-9% sendo bacteremia, intra-abdominal e infecções de sítio cirúrgico os sítios mais comuns(3, 5).

Fatores de risco para CRE no transplante hepático: MELD no momento do transplante, etiologia carcinoma hepatocelular, confecção de derivação em Y de Roux, colonização prévia ou pós transplante por CRE; diálise; mais de 48h de necessidade de ventilação mecânica, recorrência de vírus da hepatite C e fístula biliar(3)

De um total de 28 culturas de Klebsiellas, excluindo os isolados de swab retal (n=3), tivemos somente uma (4%) cultura isolada resistente ao ertapenem e sensível ao meropenem, o que sugere agente infeccioso não produtor de carbapenemase (caso 194, foco ITU, evolução com cura).

Quatro (16%) demonstravam agentes suscetíveis ao conjunto ertapenem/meropenem, uma (4%) resistente ao ertapenem e intermediário ao meropenem e as dezenove (76%) restantes com perfil de resistência ao meropenem/ertapenem. Ou seja, em nossa flora atual, o isolamento de uma Klebsiella significa chance de 80% de ela ser resistente à carbapenêmico.

Do apanhado inicial das 28 culturas positivas para KPC, os sítios mais comuns de isolamento estão demonstrados na tabela abaixo.

Sítio das culturas positivas para CRE.

Sangue

29,2%

Urina

25%

Pulmonar

16,7%

Retal

12,5%

Abdominal

8,4% (ascite 4,2% e via biliar 4,2%)

Essas 28 culturas se originaram de 13 pacientes. Haja vista que o desenrolar fisiopatológico de uma infecção pode levar infecções a sítios diferentes dos iniciais, resolvemos analisar os sítios de isolamento inicial das IRAS, que estão demonstradas na tabela abaixo.

Sítio inicial das culturas positivas para CRE.

Urina

38,56%

Sangue

30,76%

Pulmão

15,38%

Abdominal

15,38% (ascite 7,69% e via biliar 7,69%)

Na análise por esse foco as ITU ganham maior importância epidemiológica. Quase 70% das infecções por CRE são oriundas do binômio sangue-urina.

Nas infecções que iniciaram tratamento e depois recorreram (46%), 50% delas tiveram modificação do perfil de sensibilidade inicial, considerando modificações do MIC para a amicacina e meropenem.

O MIC do meropenem foi aumentando, nos 7 primeiros casos o MIC do meropenem foi de >8, nos últimos 4, MIC>32.

Em nossa casuística 92,59% dos transplantados possuíam swab de vigilância negativo para KPC ou VRE (enterococo resistente à vancomicina). Não tivemos transplantados com swabs de vigilância positivos no pré-transplante. Nos 7,41% restantes (n=2) o swab não estava disponível. Essa ausência de swabs de vigilância positivos no pré-transplante não foi resultado de exclusão para candidatura a transplante, me parece fruto de coincidência. Mesmo com risco aumentado, potenciais receptores de transplante hepático com história prévia de infecção ou colonização por CRE não devem ser excluídos da possibilidade de transplante baseado nesse fator isolado(3). Nesses casos é prática ajustar eventualmente a profilaxia ou atentar para o esquema específico no caso de surgimento de evento infeccioso no pós-operatório. Já em relação ao doador infectado ou colonizado por CRE, deve-se avaliar risco benefício, com um mínimo de 7 dias de antibioticoterapia(3), em nossa linha de conduta – excluindo situações emergenciais – optamos por não utilizar esses órgãos.

A terapêutica ótima para CRE se mantém indefinida(3-5). Drogas mais modernas como o ceftazidime/avibactam (CAZ/AVI), o meropenem/vaborbactam (MER/VAB) e o imipenem/relebactam (IMI/REL) são relatadas como o regime preferencial para tratamento das CRE. Procuramos na tabela abaixo resumir os guidelines apontados nos artigos em revisão.

 

AST

ESCMID

IDSA

Regime preferencial

 

CAZ/AVI*

CAZ/AVI*

CAZ/AVI*

 

MER/VAB*

MER/VAB*

MER/VAB*

   

IMI/REL*

Regime alternativo (dois ou mais dos seguintes)

 

Carbapenêmico alta dose, infusão estendida ou contínua.*

Polimixinas*

Não traz recomendação.*

 

Colistina ou polimixina B*

Aminoglicosídeos*

 

Tigeciclina*

Tigeciclina*

 

ou Terapia dupla de carbapenêmico.*

Fosfomicina*

AST – Sociedade Americana de Transplantação; IDSA – Sociedade de Doenças Infecciosas da América; ESCMID – Sociedade Européia de Microbiologia Clínica e Doenças Infecciosas.

* Se suscetíveis in vitro.

Nos casos de ITU não complicada, fosfomicina (oral) e aminoglicosídeos (IV) em monoterapia – se suscetíveis – podem ser alternativas terapêuticas(4). A monoterapia de aminoglicosídeos – se suscetíveis – para infecções não graves e em pacientes de baixo risco também é considerada no guideline europeu(5), que não recomenda o uso isolado da fosfomicina(5), em contraposição à AST(4). O ESCMID traz a terapia dupla de carbapenêmico com evidência insuficiente para justificar o uso(5). As polimixinas tem pouca penetração no tecido pulmonar.

Para casos de foco abdominal, a tigeciclina pode ser uma opção para monoterapia de CRE resistente à meropenem/ertapenem(4), sendo que um regime de alta dose pode ser mais efetivo do que a dose padrão.

A tigeciclina como monoterapia para infecções de corrente circulatória ou urinária tem indicação limitada por atingir rapidamente distribuição tecidual após a administração, resultando em limitada concentração nesses sítios(4)

Nos casos em que há sensibilidade aos beta-lactâmicos preferenciais (CAZ/AVI; MER/VAB; IMI/REL) não se indica associação com outras drogas(4).

A IDSA não traz posicionamento em relação a outras possibilidades terapêuticas na indisponibilidade dos beta-lactâmicos preferenciais. As opções terapêuticas alternativas são discutidas no paper relacionado aos transplantes especificamente e da população européia. As alternativas terapêuticas refletem mais a realidade econômica brasileira.

Em relação ao MIC ideal para uso dos carbapenâmicos, a AST traz para até um MIC≥16(3); já o ESCMID orienta a combinação baseada no carbapenêmico até MIC≤8 com infusão de alta dose estendida(5).

A tabela de dose da IDSA(4) está demonstrada na tabela abaixo.

Agente

IDSA

Amicacina

Cistite: 15mg/kg/dose IV (dose única)

Outras: 20mg/kg/dose 1x/dia. Doses subsequentes e intervalo baseado na avaliação farmacocinética.

CAZ/AVI

2,5g IV 8/8h

Ertapenem

1g IV 24h, infundir 30 minutos

Fosfomicina

Cistite: 3gPO 1x dose

Gentamicina

Cistite: 5mg/kg/dose

Outras: 7mg/kg/dose ao dia. Doses subsequentes e intervalo baseado na avaliação farmacocinética.

IMI/REL

1,25g IV 6/6h, infusão em 30 minutos

Meropenem

Cistite: 1g IV 8/8h

Outras: 2g IV 8/8h (infusão em 3h)

MER/VAB

4g IV 8/8h, infundir em 3h

Tigeciclina

Intra-abdominal não complicada: 100mg IV uma dose, depois 50mg IV 12/12h

Intra-abdominal complicada: 200mg IV uma dose, depois 100mg IV 12/12h

A ESCMID recomenda a conferência e guia para a dosagem a utilização do EUCAST(6), que sua versão mais atual está descrita na tabela abaixo.

Agente

ESCMID / EUCAST

Amicacina

25-30 mg/kg x1 IV

CAZ/AVI

2,5g x 3 em infusão de 2h

Ertapenem

1g IV 1x/d em 30 minutos

Fosfomicina

Oral 3g IV como dose única (ITU não complicada)

Gentamicina

6-7 mg/kg x1 IV

IMI/REL

1,25g IV 6/6h, infusão em 30 minutos

Meropenem

1g IV 3x em 30min, alta dose 2g IV 8/8h em 3h

MER/VAB

4g IV 8/8h em infusão 3h

Tigeciclina

0,1g dose ataque, seguido 50mg x2 IV

A maior diferença entre as 2 recomendações é uma dose maior de amicacina no guideline europeu e uma recomendação de dose mais elevada de tigeciclina nas intra-abdominais complicadas no norte-americano.

Em relação à dosagem das polimixinas, a referência de uso é baseada no consenso internacional publicado em 2019(7), que traz as dosagens relacionadas na tabela abaixo.

Colistina

 

Inicial: 9 milhões UI em 30-60min e dose manutenção 12-24 depois.

 

Manutenção: 9-11 milhões UI dividida em 2 doses de 12/12h, infundir 30-60 min (rim normal, corrigir se clearance alterado, com dose durante diálise)

Polimixina B

 

Inicial 2-2,5mg/kg em 1 hora

 

Manutenção: 1,25-1,5mg/kg 12/12h em infusão de 1h, sem necessidade de corrigir pelo clearance ou alguma modificação se em diálise.

A recomendação é a polimixina B como agente preferencial para uso sistêmico rotineiro, tendo a colistina preferência para as infecções do trato urinário baixo, assim como o uso associado em infecções por CRE se outros agentes disponíveis com MIC suscetível(7).

Apesar das recomendações trazerem novas drogas, as evidências de superioridade não são claras quando comparadas às drogas consideradas de regime alternativo, em relação às infecções por CRE(3-5).

Essa breve revisão sobre um tema muito complexo – que sempre exige a inter-consulta e apoio de nossos colegas da infectologia – somente confirma um corolário que a mitigação da resistência aos gram negativos só é possível através da adoção de um grupo de estratégias. O caminho para um melhor controle desse problema mundial não passa pelo desenvolvimento de novas drogas, mesmo que importante. Passa pelo saber o uso prudente e racional dos antibióticos, atenção ao diagnóstico laboratorial, utilização de terapia combinada, precauções de controle infeccioso já padronizadas assim como as boas práticas de stewardship.

Pontos- chave

– As infecções por CRE são um problema de relevante envergadura mundial.

– A maioria das Klebsiellas de nossa flora no transplante hepático é resistente à carbapenêmicos.

– Atacar as IRAS de origem urinária e sanguínea irão abranger 70% das infecções por CRE no transplante hepático.

– O transplante é umbilicalmente ligado à infectologia, pois as melhores práticas de stewardship devem ser fomentadas e constantemente aperfeiçoadas.

Referências bibliográficas.
  1. Organization WH. WHO publishes list of bacteria for which new antibiotics are urgently needed. 2017.
  2. Mills JP, Marchaim D. Multidrug-Resistant Gram-Negative Bacteria: Infection Prevention and Control Update. Infect Dis Clin North Am. 2021 Dec;35(4):969-94.
  3. Pouch SM, Patel G, Practice ASTIDCo. Multidrug-resistant Gram-negative bacterial infections in solid organ transplant recipients-Guidelines from the American Society of Transplantation Infectious Diseases Community of Practice. Clin Transplant. 2019 Sep;33(9):e13594.
  4. Tamma PD, Aitken SL, Bonomo RA, Mathers AJ, van Duin D, Clancy CJ. Infectious Diseases Society of America Guidance on the Treatment of Extended-Spectrum beta-lactamase Producing Enterobacterales (ESBL-E), Carbapenem-Resistant Enterobacterales (CRE), and Pseudomonas aeruginosa with Difficult-to-Treat Resistance (DTR-P. aeruginosa). Clin Infect Dis. 2021 Apr 8;72(7):e169-e83.
  5. Paul M, Carrara E, Retamar P, Tangden T, Bitterman R, Bonomo RA, et al. European Society of clinical microbiology and infectious diseases (ESCMID) guidelines for the treatment of infections caused by Multidrug-resistant Gram-negative bacilli (endorsed by ESICM -European Society of intensive care Medicine). Clin Microbiol Infect. 2021 Dec 16.
  6. Diseases ESoCMaI. EUCAST – European Committee on antimicrobial susceptibility testing. [cited 2021 19/01/2022]; Available from: https://www.eucast.org/clinical_breakpoints/.
  7. Tsuji BT, Pogue JM, Zavascki AP, Paul M, Daikos GL, Forrest A, et al. International Consensus Guidelines for the Optimal Use of the Polymyxins: Endorsed by the American College of Clinical Pharmacy (ACCP), European Society of Clinical Microbiology and Infectious Diseases (ESCMID), Infectious Diseases Society of America (IDSA), International Society for Anti-infective Pharmacology (ISAP), Society of Critical Care Medicine (SCCM), and Society of Infectious Diseases Pharmacists (SIDP). Pharmacotherapy. 2019 Jan;39(1):10-39.
Aviso legal: como médicos também temos a função social de divulgar a medicina e saúde, aproveite essas informações para cuidar da sua. Entretanto, reforçamos que ela não substitui atendimento médico.

Siga-nos