Fardo e estigmas das doenças do fígado relacionadas ao álcool.

O álcool é importante fator de morbimortalidade no Brasil. Na população abaixo de 50 anos, os transtornos relacionados ao uso do álcool representam 2,93% dos anos de vida saudáveis perdidos por morte ou incapacitação, a frente do diabetes (1,76%), doenças isquêmicas do coração (2,43%), acidentes vasculares encefálicos (2,02%) ou uso de outras drogas (1,59%)(1).

O espectro psicossocial do transtorno do abuso do álcool está relacionado ao manejo das doenças do fígado, que apesar de relacionados, não são sinônimos. Apesar de ser uma droga socialmente aceita, o adoecer pelo álcool resulta em uma série de estigmas, que aumentam o fardo da doença, retardam ou até evitam a busca por tratamento, resultando em desfechos desfavoráveis.

Crenças falsas ou presunções relacionadas à responsabilidade individual, que nutrem o estigma público frente ao transtorno do uso do álcool, consideram que o problema é de falta de força de vontade do indivíduo(2). Elas ignoram que as características do abuso do álcool têm um caráter crônico, de potenciais recaídas, muito similar a outras condições médicas como obesidade, hipertensão ou diabetes(3). O uso compulsivo de uma substância é causado por alterações cerebrais e sua suscetibilidade é modulada por fatores sociais, genéticos, de desenvolvimento e psiquiátricos, doravante muito além da força de vontade ou de controle do indivíduo. É um achado consistente em estudos que as pessoas censuram, culpam essas pessoas, responsabilizando-as tanto por adquirir o transtorno quanto por não ficar melhor dele(4).No setor de saúde, essas mesmas pessoas relatam comportamento discriminatório, moralizante, condescendente de profissionais de saúde, o que dificulta o engajamento no tratamento.

Ao internalizar o estigma público essas pessoas reforçam sintomas depressivos e de baixa auto-estima, em um modelo de estigma pessoal que mais frequentemente resulta em um mecanismo de defesa de reduzir, de minimizar os próprios problemas com a bebida. Isso reduz a eficácia de um plano terapêutico, já que é notório que o reconhecimento do problema é o que auxilia a busca do tratamento, intervenções mais precoces e melhora da auto-estima dessas pessoas(3).
Os estigmas de ordem estrutural se referem a políticas institucionais ou governamentais, como a ultrapassada, porém enraizada, regra dos 6 meses de abstinência antes de um transplante hepático. Esse entendimento desvia do objetivo maior de um transplante – aumento de sobrevida – o que privava as pessoas de um tratamento que muitas vezes não pode esperar os 6 meses para ser efetivo. Tal regra serve de um balizador geral, pois há casos clínicos em que a abstinência livra o paciente da necessidade do transplante, porém é muito criticável em casos de doenças agudas ou crônico-agudizadas graves causada pelo álcool(5, 6).
A própria falta de reconhecimento que o transtorno de abuso do álcool requer acompanhamento psiquiátrico especializado reflete um estigma estrutural, muitas vezes potencializados por atitudes individuais dos profissionais de saúde(7), que acabam rotulando essas doenças como de menor prestígio ou de “merecimento” de um transplante(8), ignorando que suas atitudes são particularmente relevantes aos pacientes.

O reconhecimento e a internalização do conceito que a sociedade precisa estender a mão para o tratamento das pessoas com o transtorno do abuso do álcool, e gradualmente capacitá-los a exercerem sua responsabilidade individual é necessário. Políticas públicas que visem educação no ensino médio, de treinamento aos profissionais de saúde e de acesso ao tratamento dos pacientes são necessárias, como parte fundamental da redução desses estigmas tão enraizados em nossa sociedade.

Referências bibliográficas.
  1. Global Burden of Diseases – Compare Data Visualization. [Internet]. University of Washington. 2020 [cited 11/07/2022]. Available from: http://vizhub.healthdata.org/gbd-compare.
  2. Volkow ND. Stigma and the Toll of Addiction. N Engl J Med. 2020;382(14):1289-90.
  3. Schomerus G, Leonhard A, Manthey J, Morris J, Neufeld M, Kilian C, et al. The stigma of alcohol-related liver disease and its impact on healthcare. Journal of Hepatology.
  4. Kilian C, Manthey J, Carr S, Hanschmidt F, Rehm J, Speerforck S, et al. Stigmatization of people with alcohol use disorders: An updated systematic review of population studies. Alcohol Clin Exp Res. 2021;45(5):899-911.
  5. Donckier V, Lucidi V, Gustot T, Moreno C. Ethical considerations regarding early liver transplantation in patients with severe alcoholic hepatitis not responding to medical therapy. J Hepatol. 2014;60(4):866-71.
  6. Lee BP, Terrault NA. Early liver transplantation for severe alcoholic hepatitis: moving from controversy to consensus. Curr Opin Organ Transplant. 2018;23(2):229-36.
  7. Vaughn-Sandler V, Sherman C, Aronsohn A, Volk ML. Consequences of perceived stigma among patients with cirrhosis. Dig Dis Sci. 2014;59(3):681-6.
  8. Neuberger J. Public and professional attitudes to transplanting alcoholic patients. Liver Transpl. 2007;13(11 Suppl 2):S65-8.
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